O baile do caixeiro-viajante
Leôncio, sim, era esse o seu nome, conheço bem sua incrível história de
amor. Leôncio era um caixeiro-viajante da capital e vinha à cidade uma vez por
mês prover de mercadorias as vendas do lugar. Ia e voltava no mesmo dia, mas
houve algum problema com sua condução e daquela vez ele teve que dormir na
cidade. Cidade pequena, sem muitos atrativos, o que se poderia fazer à noite
para distração? Era dia de baile na cidade, um sábado especial, e uma orquestra
de fora tinha sido contratada.
O moço do hotel que servia o jantar comentou:
– Seu Leôncio, este baile o senhor não pode perder.
E não podia mesmo, mal sabia ele. Leôncio mandou passar o terno e foi ao
baile. Gostava de dançar, sabia até dar uns bons passos, mas era tímido,
relutava em tirar as moças. Passou boa parte do tempo de pé, apreciando,
bebericando um vermute só para ter o que fazer com as mãos.
Por volta de meia-noite sentiu que chegava o sono e pensou em se
retirar. Foi quando viu Marina entrar no salão. Ficou sabendo depois que seu
nome era Marina. A moça chegou só e, ao entrar, passou junto a Leôncio. Bem
perto dele ela parou e se virou para trás.
– Oh! Deixei cair minha chave no chão.
Ela falava consigo mesma, distraída que estava, mas para Leôncio, que
tudo ouviu atentamente, suas palavras funcionaram como uma deixa.
Ele se abaixou rapidamente, pegou
a chave do chão e a estendeu à sua dona. Antes que ela dissesse qualquer coisa
ele falou:
– Pode agradecer com uma contradança, senhorita.
– Marina, meu nome é Marina. Sim, vamos dançar.
Dançaram aquela contradança e mais outra e outras mais. Dançaram o resto
da noite, até o baile terminar.
Parecia que os dois eram velhos parceiros de dança, tão leves e tão
graciosos eram seus passos. Leôncio se sentia completamente enlevado, como se o
encontro com a bela dançarina. fosse um presente enviado pelo céu. Presente que
ele nem merecia, chegou a pensar. Agradeceu à providência ter permanecido na
cidade. Já nem queria ir embora no dia seguinte.
Em nenhum momento Marina fez menção de o deixar para encontrar amigos ou
conhecidos no salão. Ele tinha a sensação de que ela fora ao baile só por ele,
de que era com ele que queria dançar a noite toda. Não teria namorado noivo,
marido? Muitas paixões chegam enquanto se dança. Leôncio apaixonou-se por
Marina ao dançar com ela.
Então, a orquestra tocou a música de encerramento e o baile acabou, já
era alta madrugada. Leôncio insistiu em acompanhar a moça até sua casa. Ela
aceitou a companhia, era perto, iriam a pé. Estava frio lá fora, uma fina garoa
molhava as calçadas. Na portaria do clube Leôncio pegou a capa que tinha
deixado ali guardada. Ele tinha uma capa da qual nunca se separava. Leôncio
ofereceu a capa à companheira para que se protegesse do mau tempo.
– Para você não se resfriar, faz frio.
Ela aceitou, vestiu o, sobretudo e os dois foram andando pelas calçadas.
Caminhavam de mãos dadas, como namorados, falavam pouco, só o essencial. Próximo
à saída da cidade, a moça disse ao caixeiro-viajante:
– Despedimo-nos aqui.
E explicou o motivo:
– Não fica bem você ir comigo até onde moro.
– Está bem, como quiser – ele consentiu.
Começando a despir o sobretudo, ela disse:
– Leve sua capa.
– Não, fique com ela. Está frio.
E completou:
– Depois você me devolve.
Era difícil para Leôncio deixar a moça ir, mas havia a possibilidade do
amanhã e do futuro todo. Ele propôs, com o coração na mão:
– Amanhã, às oito da noite, em frente à matriz?
Ela assentiu e o beijou.
A garoa fria tinha se transformado em densa neblina, mal se vislumbrava
a luz dos postes de iluminação. O silêncio reinava soberano. Um cão uivou ao
longe. Leôncio viu Marina desaparecer na bruma da madrugada. Com as mãos nos
bolsos e o corpo retesado pela friagem, o caixeiro retornou ao hotel.
O dia seguinte foi de grande ansiedade, mas finalmente a noite chegou
para Leôncio. Muito antes da hora marcada lá estava ele em frente à igreja
esperando por Marina. Só quando o relógio da matriz bateu doze badaladas
Leôncio aceitou com tristeza que ela não viria mais. Temeu que alguma coisa
grave tivesse acontecido. Tinha certeza de que ela gostara dele tanto quanto
ele gostara dela. Alguma coisa grave teria acontecido. Ele ia descobrir.
Era tarde e só restava ir dormir, mas na manhã seguinte, mal se levantou,
já foi perguntando pela moça. Na rua, no largo da matriz, em todo lugar,
interrogava sobre a moça e nada. Estranhamente ninguém sabia dizer quem era
ela. Numa cidade pequena todo mundo se conhece, todos sabem da vida de todos,
todos se controlam, vigiam-se uns aos outros. A fofoca é cultivada como se
fosse uma obrigação, como se representasse um dever cívico. Uma linda moça da
cidade vai ao baile desacompanhada, dança a noite toda com um desconhecido e
ninguém sabe quem ela é?
Ele continuou perguntando por sua dançarina. Foi aos armazéns e lojas
que tinha como clientes, descrevia a moça, dizia seu nome e ninguém sabia dizer
quem era a donzela.
– Aquela com quem dancei ontem a noite toda.
Ninguém tinha visto. Desanimado, voltou para sua hospedagem. Então um
velho se apresentou, era um empregado do hotel, empregado que Leôncio nunca
tinha visto, nem nessa nem em outras estadas na cidade. Era alto, magro e de
uma palidez desconcertante. Ele lhe disse:
– Moço, conheci uma tal Marina igualzinha à sua.
E completou, baixando a voz respeitosamente:
– Mas ela está morta, morreu há muito tempo.
Disse que a moça pereceu num desastre de carro, quando estava fugindo
para se casar com um caixeiro-viajante, casamento que a família dela não
queria, de jeito nenhum. Leôncio ficou chocado com a história, que absurdo!
Imaginar que se tratava da mesma pessoa!
– Nem pensar. Eu a tive nos braços a noite toda!
Mas o velho funcionário insistiu:
– No túmulo dela tem a fotografia, quer ver?
– Não pode ser, é um disparate, mas quero ver.
O velho não se fez de rogado. Em poucos minutos estavam os dois subindo
a ladeira que levava ao afastado cemitério da cidade. Com a cabeça girando,
cheio de dúvidas e incertezas, Leôncio se perguntava:
– O que é que eu estou fazendo aqui?
Chegaram ao portão do campo-santo e o velho disse a Leôncio que entrasse
sozinho. Não gostava de cemitérios, desculpou-se. Explicou como chegar ao
túmulo da moça, despediu-se com uma reverência e foi embora. Não foi difícil
para o caixeiro-viajante encontrar o túmulo que seu acompanhante descreveu com
precisão.
A tardinha se fora, escurecia, a noite já caía sobre o cemitério. A
neblina voltava a descer e esfriara um pouco. Leôncio sentia frio, tremia, mas
podia enxergar perfeitamente. Estava de pé diante da tumba. E o retrato da
defunta que ali jazia era mesmo o dela. “Aqui descansa em paz Marina, filha
querida”, era o que dizia a inscrição em letras de bronze, havia muito tempo
enegrecidas, fixadas sobre o mármore gasto da lápide mortuária.
O olhar atordoado de Leôncio desviou-se do retrato, não queria ver mais
o rosto amado aprisionada na pedra pela morte. Triste má sorte a do viajante,
havia mais coisa para ver ali. Uma tragédia nunca se completa sem antes
multiplicar o desespero. O olhar de Leôncio subiu em direção à parte alta do
sepulcro. Na cabeceira estava uma peça que lhe era bastante familiar. Sentiu um
calafrio lhe percorrer a espinha, tinha as pernas bambas, o coração disparado. Aproximou-se
mais do túmulo para ver melhor. Estendida sobre a sepultura, à sua espera,
repousava sua inseparável capa.
PRANDI,
Reginaldo. Contos populares: Minha querida assombração. São Paulo. Companhia
das Letrinhas, 2003.