quinta-feira, 4 de março de 2021

Leitura para o 8º ano

                                                                        A bola

 

O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Um número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.

O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!”. Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.

— Como e que liga? — perguntou.

— Como, como é que liga? Não se liga.

O garoto procurou dentro do papel de embrulho.

— Não tem manual de instrução?

O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros.

— Não precisa manual de instrução.

— O que é que ela faz?

— Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.

— O quê?

— Controla, chuta…

— Ah, então é uma bola.

— Claro que é uma bola.

— Uma bola, bola. Uma bola mesmo.

— Você pensou que fosse o quê?

— Nada, não.

O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de bip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente.

O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina.

O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.

— Filho, olha.

O garoto disse “Legal”, mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Comédias para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

 

segunda-feira, 1 de março de 2021

Leitura para o 7º ano:

 

O baile do caixeiro-viajante


Leôncio, sim, era esse o seu nome, conheço bem sua incrível história de amor. Leôncio era um caixeiro-viajante da capital e vinha à cidade uma vez por mês prover de mercadorias as vendas do lugar. Ia e voltava no mesmo dia, mas houve algum problema com sua condução e daquela vez ele teve que dormir na cidade. Cidade pequena, sem muitos atrativos, o que se poderia fazer à noite para distração? Era dia de baile na cidade, um sábado especial, e uma orquestra de fora tinha sido contratada.

O moço do hotel que servia o jantar comentou:

– Seu Leôncio, este baile o senhor não pode perder.

E não podia mesmo, mal sabia ele. Leôncio mandou passar o terno e foi ao baile. Gostava de dançar, sabia até dar uns bons passos, mas era tímido, relutava em tirar as moças. Passou boa parte do tempo de pé, apreciando, bebericando um vermute só para ter o que fazer com as mãos.

Por volta de meia-noite sentiu que chegava o sono e pensou em se retirar. Foi quando viu Marina entrar no salão. Ficou sabendo depois que seu nome era Marina. A moça chegou só e, ao entrar, passou junto a Leôncio. Bem perto dele ela parou e se virou para trás.

– Oh! Deixei cair minha chave no chão.

Ela falava consigo mesma, distraída que estava, mas para Leôncio, que tudo ouviu atentamente, suas palavras funcionaram como uma deixa.

 Ele se abaixou rapidamente, pegou a chave do chão e a estendeu à sua dona. Antes que ela dissesse qualquer coisa ele falou:

– Pode agradecer com uma contradança, senhorita.

– Marina, meu nome é Marina. Sim, vamos dançar.

Dançaram aquela contradança e mais outra e outras mais. Dançaram o resto da noite, até o baile terminar.

Parecia que os dois eram velhos parceiros de dança, tão leves e tão graciosos eram seus passos. Leôncio se sentia completamente enlevado, como se o encontro com a bela dançarina. fosse um presente enviado pelo céu. Presente que ele nem merecia, chegou a pensar. Agradeceu à providência ter permanecido na cidade. Já nem queria ir embora no dia seguinte.

Em nenhum momento Marina fez menção de o deixar para encontrar amigos ou conhecidos no salão. Ele tinha a sensação de que ela fora ao baile só por ele, de que era com ele que queria dançar a noite toda. Não teria namorado noivo, marido? Muitas paixões chegam enquanto se dança. Leôncio apaixonou-se por Marina ao dançar com ela.

Então, a orquestra tocou a música de encerramento e o baile acabou, já era alta madrugada. Leôncio insistiu em acompanhar a moça até sua casa. Ela aceitou a companhia, era perto, iriam a pé. Estava frio lá fora, uma fina garoa molhava as calçadas. Na portaria do clube Leôncio pegou a capa que tinha deixado ali guardada. Ele tinha uma capa da qual nunca se separava. Leôncio ofereceu a capa à companheira para que se protegesse do mau tempo.

– Para você não se resfriar, faz frio.

Ela aceitou, vestiu o, sobretudo e os dois foram andando pelas calçadas. Caminhavam de mãos dadas, como namorados, falavam pouco, só o essencial. Próximo à saída da cidade, a moça disse ao caixeiro-viajante:

– Despedimo-nos aqui.

E explicou o motivo:

– Não fica bem você ir comigo até onde moro.

– Está bem, como quiser – ele consentiu.

Começando a despir o sobretudo, ela disse:

– Leve sua capa.

– Não, fique com ela. Está frio.

E completou:

– Depois você me devolve.

Era difícil para Leôncio deixar a moça ir, mas havia a possibilidade do amanhã e do futuro todo. Ele propôs, com o coração na mão:

– Amanhã, às oito da noite, em frente à matriz?

Ela assentiu e o beijou.

A garoa fria tinha se transformado em densa neblina, mal se vislumbrava a luz dos postes de iluminação. O silêncio reinava soberano. Um cão uivou ao longe. Leôncio viu Marina desaparecer na bruma da madrugada. Com as mãos nos bolsos e o corpo retesado pela friagem, o caixeiro retornou ao hotel.

O dia seguinte foi de grande ansiedade, mas finalmente a noite chegou para Leôncio. Muito antes da hora marcada lá estava ele em frente à igreja esperando por Marina. Só quando o relógio da matriz bateu doze badaladas Leôncio aceitou com tristeza que ela não viria mais. Temeu que alguma coisa grave tivesse acontecido. Tinha certeza de que ela gostara dele tanto quanto ele gostara dela. Alguma coisa grave teria acontecido. Ele ia descobrir.

Era tarde e só restava ir dormir, mas na manhã seguinte, mal se levantou, já foi perguntando pela moça. Na rua, no largo da matriz, em todo lugar, interrogava sobre a moça e nada. Estranhamente ninguém sabia dizer quem era ela. Numa cidade pequena todo mundo se conhece, todos sabem da vida de todos, todos se controlam, vigiam-se uns aos outros. A fofoca é cultivada como se fosse uma obrigação, como se representasse um dever cívico. Uma linda moça da cidade vai ao baile desacompanhada, dança a noite toda com um desconhecido e ninguém sabe quem ela é?

Ele continuou perguntando por sua dançarina. Foi aos armazéns e lojas que tinha como clientes, descrevia a moça, dizia seu nome e ninguém sabia dizer quem era a donzela.

– Aquela com quem dancei ontem a noite toda.

Ninguém tinha visto. Desanimado, voltou para sua hospedagem. Então um velho se apresentou, era um empregado do hotel, empregado que Leôncio nunca tinha visto, nem nessa nem em outras estadas na cidade. Era alto, magro e de uma palidez desconcertante. Ele lhe disse:

– Moço, conheci uma tal Marina igualzinha à sua.

E completou, baixando a voz respeitosamente:

– Mas ela está morta, morreu há muito tempo.

Disse que a moça pereceu num desastre de carro, quando estava fugindo para se casar com um caixeiro-viajante, casamento que a família dela não queria, de jeito nenhum. Leôncio ficou chocado com a história, que absurdo! Imaginar que se tratava da mesma pessoa!

– Nem pensar. Eu a tive nos braços a noite toda!

Mas o velho funcionário insistiu:

– No túmulo dela tem a fotografia, quer ver?

– Não pode ser, é um disparate, mas quero ver.

O velho não se fez de rogado. Em poucos minutos estavam os dois subindo a ladeira que levava ao afastado cemitério da cidade. Com a cabeça girando, cheio de dúvidas e incertezas, Leôncio se perguntava:

– O que é que eu estou fazendo aqui?

Chegaram ao portão do campo-santo e o velho disse a Leôncio que entrasse sozinho. Não gostava de cemitérios, desculpou-se. Explicou como chegar ao túmulo da moça, despediu-se com uma reverência e foi embora. Não foi difícil para o caixeiro-viajante encontrar o túmulo que seu acompanhante descreveu com precisão.

A tardinha se fora, escurecia, a noite já caía sobre o cemitério. A neblina voltava a descer e esfriara um pouco. Leôncio sentia frio, tremia, mas podia enxergar perfeitamente. Estava de pé diante da tumba. E o retrato da defunta que ali jazia era mesmo o dela. “Aqui descansa em paz Marina, filha querida”, era o que dizia a inscrição em letras de bronze, havia muito tempo enegrecidas, fixadas sobre o mármore gasto da lápide mortuária.

O olhar atordoado de Leôncio desviou-se do retrato, não queria ver mais o rosto amado aprisionada na pedra pela morte. Triste má sorte a do viajante, havia mais coisa para ver ali. Uma tragédia nunca se completa sem antes multiplicar o desespero. O olhar de Leôncio subiu em direção à parte alta do sepulcro. Na cabeceira estava uma peça que lhe era bastante familiar. Sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha, tinha as pernas bambas, o coração disparado. Aproximou-se mais do túmulo para ver melhor. Estendida sobre a sepultura, à sua espera, repousava sua inseparável capa.

 

PRANDI, Reginaldo. Contos populares: Minha querida assombração. São Paulo. Companhia das Letrinhas, 2003.

Leitura para o 6º ano:

 

Peter Pan

 

Nunca existiu uma família mais feliz nem mais simples. Até que Peter Pan apareceu.

A primeira vez que a senhora Darling ouviu falar em Peter Pan foi quando estava fazendo faxina geral dentro das cabeças das crianças. Toda noite as boas mães costumam dar uma bela arrumação por dentro da cabeça dos filhos depois que eles vão dormir, deixando tudo bem limpo para o dia seguinte e botando de volta no lugar uma porção de coisas que tenham ficado espalhadas durante o dia.

Dizem que se você conseguisse ficar acordado (mas é claro que isso não acontece), veria sua mãe fazendo isso. E garanto que ia achar muito interessante ficar observando. É bem parecido com uma arrumação de gavetas. Você ia ver que ela estaria ajoelhada, provavelmente, com ar divertido, cantarolando, examinando com atenção tudo que encontrasse, imaginando em que lugar você podia ter apanhado uma coisa tão esquisita como esta ou aquela ali, descobrindo coisas engraçadinhas e outras nem tanto, acariciando alguma outra junto ao rosto como se fosse um gatinho fofo, ou rapidamente descartando mais outra e jogando fora. Quando você acorda de manhã, as respostas malcriadas e as paixões más com que você foi dormir já estão dobradinhas e bem guardadas no fundo da cabeça. E por cima, arejados e perfumados, estão bem abertos seus pensamentos melhores e mais bonitos, prontos para serem usados.

Eu não sei se alguma vez você já viu o mapa da cabeça de uma pessoa por dentro. Às vezes, os médicos desenham mapas de outras partes suas e seu próprio mapa pode ser muito interessante. Mas eles nunca se metem a desenhar a mente de uma criança. Não só porque é muito confusa, mas porque ela fica girando sem parar. É cheia de linhas em ziguezague, parecidas com os gráficos de temperatura. Provavelmente, essas linhas são estradas da ilha.

Ah, sim, porque a Terra do Nunca é, sempre, mais ou menos uma ilha, com manchas surpreendentes de cores aqui e ali, com recifes de coral e embarcações cheias de mastros se fazendo ao largo, com selvagens e covis solitários, com gnomos que quase sempre são alfaiates, com cavernas por onde correm rios, com príncipes que têm seis irmãos mais velhos, e uma cabana que está caindo aos pedaços, e uma velha muito velha de nariz torto.

É claro também que as Terras do Nunca são muito variadas. A de João, por exemplo, tinha uma lagoa cheia de flamingos que levantavam voo por cima dela quando João ia caçar. Mas a de Miguel, que era muito pequena, tinha um flamingo cheio de lagoas que levantavam voo por cima dele. Miguel morava numa tenda de índios. Wendy, numa casinha feita de folhas muito bem costuradinhas umas nas outras. João não tinha amigos, Miguel tinha amigos de noite, Wendy tinha um lobinho de estimação que tinha sido abandonado pelos pais.

Mas, de um modo geral, as Terras do Nunca têm um certo ar de família. Se elas ficassem enfileiradas uma do lado da outra, a gente poderia dizer que uma tem o nariz da outra, os mesmos olhos e assim por diante. Nessas praias mágicas, as crianças quando brincam estão para sempre banhando suas conchas de coral e madrepérola. Nós também estivemos lá um dia. Ainda conseguimos ouvir o barulho das ondas. Porém, nunca mais desembarcaremos em suas areias.

De vez em quando, numa ou noutra das viagens que fazia por dentro da cabeça dos filhos, a senhora Darling encontrava coisas que não conseguia entender. De todas essas coisas, a mais misteriosa era a palavra Peter. Ela não conhecia nenhum Peter, mas, apesar disso, lá estava ele nas cabeças de João e Miguel. E Wendy começava a ter Peter rabiscado por toda parte. O nome se destacava, com letras mais fortes do que as de qualquer outra palavra. Quanto mais a senhora Darling olhava, mais achava que ele tinha um ar muito atrevido.

 — Tem razão, ele é mesmo um pouco atrevido — Wendy admitiu com certa tristeza, quando sua mãe lhe perguntou a respeito.

 Mas quem é ele, minha querida?

 — Você sabe, mãe. É Peter Pan...

 No começo, a senhora Darling não sabia. Mas aos poucos foi começando a pensar na sua infância e se lembrou de um certo Peter Pan que, diziam, vivia com as fadas. Havia umas histórias esquisitas sobre ele. Como a que contava que quando uma criança morre, ele a acompanha durante parte do caminho, para que ela não se assuste. Naquele tempo, a senhora Darling tinha até acreditado nele, mas agora que estava casada e tinha juízo, bem que duvidava de que tivesse existido uma pessoa assim.

 — Além do mais — disse ela a Wendy —, a esta altura ele já teria crescido, seria adulto.

 — Ah, não, ele não cresceu...  — Wendy garantiu a ela, com toda segurança — e é bem do meu tamanho.

O que ela queria dizer é que ele tinha o tamanho exato dela, tanto no corpo como dentro da cabeça. E ela não sabia como sabia disso. Mas sabia.

 

BARRIE, J.M. Peter Pan. Tradução de Ana Maria Machado. São Paulo: Salamandra, 2006.