segunda-feira, 1 de março de 2021

Leitura para o 6º ano:

 

Peter Pan

 

Nunca existiu uma família mais feliz nem mais simples. Até que Peter Pan apareceu.

A primeira vez que a senhora Darling ouviu falar em Peter Pan foi quando estava fazendo faxina geral dentro das cabeças das crianças. Toda noite as boas mães costumam dar uma bela arrumação por dentro da cabeça dos filhos depois que eles vão dormir, deixando tudo bem limpo para o dia seguinte e botando de volta no lugar uma porção de coisas que tenham ficado espalhadas durante o dia.

Dizem que se você conseguisse ficar acordado (mas é claro que isso não acontece), veria sua mãe fazendo isso. E garanto que ia achar muito interessante ficar observando. É bem parecido com uma arrumação de gavetas. Você ia ver que ela estaria ajoelhada, provavelmente, com ar divertido, cantarolando, examinando com atenção tudo que encontrasse, imaginando em que lugar você podia ter apanhado uma coisa tão esquisita como esta ou aquela ali, descobrindo coisas engraçadinhas e outras nem tanto, acariciando alguma outra junto ao rosto como se fosse um gatinho fofo, ou rapidamente descartando mais outra e jogando fora. Quando você acorda de manhã, as respostas malcriadas e as paixões más com que você foi dormir já estão dobradinhas e bem guardadas no fundo da cabeça. E por cima, arejados e perfumados, estão bem abertos seus pensamentos melhores e mais bonitos, prontos para serem usados.

Eu não sei se alguma vez você já viu o mapa da cabeça de uma pessoa por dentro. Às vezes, os médicos desenham mapas de outras partes suas e seu próprio mapa pode ser muito interessante. Mas eles nunca se metem a desenhar a mente de uma criança. Não só porque é muito confusa, mas porque ela fica girando sem parar. É cheia de linhas em ziguezague, parecidas com os gráficos de temperatura. Provavelmente, essas linhas são estradas da ilha.

Ah, sim, porque a Terra do Nunca é, sempre, mais ou menos uma ilha, com manchas surpreendentes de cores aqui e ali, com recifes de coral e embarcações cheias de mastros se fazendo ao largo, com selvagens e covis solitários, com gnomos que quase sempre são alfaiates, com cavernas por onde correm rios, com príncipes que têm seis irmãos mais velhos, e uma cabana que está caindo aos pedaços, e uma velha muito velha de nariz torto.

É claro também que as Terras do Nunca são muito variadas. A de João, por exemplo, tinha uma lagoa cheia de flamingos que levantavam voo por cima dela quando João ia caçar. Mas a de Miguel, que era muito pequena, tinha um flamingo cheio de lagoas que levantavam voo por cima dele. Miguel morava numa tenda de índios. Wendy, numa casinha feita de folhas muito bem costuradinhas umas nas outras. João não tinha amigos, Miguel tinha amigos de noite, Wendy tinha um lobinho de estimação que tinha sido abandonado pelos pais.

Mas, de um modo geral, as Terras do Nunca têm um certo ar de família. Se elas ficassem enfileiradas uma do lado da outra, a gente poderia dizer que uma tem o nariz da outra, os mesmos olhos e assim por diante. Nessas praias mágicas, as crianças quando brincam estão para sempre banhando suas conchas de coral e madrepérola. Nós também estivemos lá um dia. Ainda conseguimos ouvir o barulho das ondas. Porém, nunca mais desembarcaremos em suas areias.

De vez em quando, numa ou noutra das viagens que fazia por dentro da cabeça dos filhos, a senhora Darling encontrava coisas que não conseguia entender. De todas essas coisas, a mais misteriosa era a palavra Peter. Ela não conhecia nenhum Peter, mas, apesar disso, lá estava ele nas cabeças de João e Miguel. E Wendy começava a ter Peter rabiscado por toda parte. O nome se destacava, com letras mais fortes do que as de qualquer outra palavra. Quanto mais a senhora Darling olhava, mais achava que ele tinha um ar muito atrevido.

 — Tem razão, ele é mesmo um pouco atrevido — Wendy admitiu com certa tristeza, quando sua mãe lhe perguntou a respeito.

 Mas quem é ele, minha querida?

 — Você sabe, mãe. É Peter Pan...

 No começo, a senhora Darling não sabia. Mas aos poucos foi começando a pensar na sua infância e se lembrou de um certo Peter Pan que, diziam, vivia com as fadas. Havia umas histórias esquisitas sobre ele. Como a que contava que quando uma criança morre, ele a acompanha durante parte do caminho, para que ela não se assuste. Naquele tempo, a senhora Darling tinha até acreditado nele, mas agora que estava casada e tinha juízo, bem que duvidava de que tivesse existido uma pessoa assim.

 — Além do mais — disse ela a Wendy —, a esta altura ele já teria crescido, seria adulto.

 — Ah, não, ele não cresceu...  — Wendy garantiu a ela, com toda segurança — e é bem do meu tamanho.

O que ela queria dizer é que ele tinha o tamanho exato dela, tanto no corpo como dentro da cabeça. E ela não sabia como sabia disso. Mas sabia.

 

BARRIE, J.M. Peter Pan. Tradução de Ana Maria Machado. São Paulo: Salamandra, 2006.

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